sobre o grito. seu grito. sobre o choro. meu choro.

na ribeira
4 min readJun 29, 2023

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Campin Grande-PB, julho de 2023

Oi, essa carta aqui talvez saia diferente de outras cartas que já te entreguei/enviei. Mas preciso te falar coisas antes do nosso encontro. Te escrevo encorajada pela minha analista e pelos meus processos desencadeados a partir da nossa distância física e emocional.

Quase três meses de Rio de Janeiro. Uma cidade barulhenta, que grita. Lembro que quando cheguei aqui em 2017, me assustei com fato das pessoas gritarem muito. Gritam na rua, no supermercado, na padaria, nos apartamentos vizinhos, no petshop, no posto médico, na loja de roupas, no metrô…
Nesse processo ficava me perguntando:
“como essa cidade se acostumou tanto a violência verbal a ponto de não percebe-la mais?”
“como chegou ao ponto de não ver isso como violência?”
“e ao ponto de ser violento na frente de todos e não se envergonhar”?

Mas aqui é a cidade dos milicianos. Da guerra a céu aberto. De dormir e acordar ao som de disparo de armas, de criança preta ser assassinada com a farda da escola, a não sair de casa sem antes olhar o OTT-RJ (onde tem tiroteio), a cidade dos 80 disparos contra um carro que conduzia uma família negra, do assassinato de Marielle Franco que até hoje não temos uma resposta, aqui é a cidade da chacina da juventude preta, pobre e periférica. Então, parece que tudo bem gritar.

Os gritos que escuto nessa cidade são naturalizados. Mas muitas vezes você tem que sair de dentro do supermercado, da praia, do metrô lotado porque as pessoas que estão gritando também estão se esmurrando. Ainda não me acostumei a isso, acredito que nunca me acostumarei, ainda mais porque às vezes o grito vem acompanhado de violência física ou armada… Então você nunca sabe o que pode estar realmente acontecendo no local do grito, por isso a melhor escapatória as vezes é fugir dali. Sair de perto. Gerando um efeito manada em que todes vão embora apavorados.

Eu não estou acostumada com tanta agressividade e sempre pensei “Eu não ia aturar alguém falando assim comigo”.
Mas aí você apareceu na minha vida, você e o seu grito. Eu e o meu choro.
O primeiro ponto é que todos os casais tem suas discussões. Todo casal, toda família, amigues discutem, discordam, ficam de mal um do outro, mas não é bom brigar, xingar e gritar e brigar. Isso não é nada legal, por isso é importante a conversa.

E com o seu grito e o meu choro, venho pensando “Como viver com alguém que grita?”. Isso desencadeia um processo de pensar: “como viver com alguém que sempre gritou pra conseguir o que queria?” “como viver com alguém que sempre precisou gritar pra ser ouvida?” A resposta pra essas perguntas eu não sei.

Minha maior questão é essa. Também não sei como muita gente naturaliza o gritar. Muitas vezes acreditamos que o pai ou a mãe tem que dar uns gritos de vez em quando, e que esse também é o papel de ser pai ou mãe. Mas também precisamos entender que grito é situação extrema, xingamento é mais do que extrema. E que há traumatismos, afinal o grito é uma comunicação violenta.

Acho que muita gente acredita que gritar é como estar no tom errado, mesmo que esteja certo. Faz sentido?
Minha resposta ao grito é o silêncio, que vem acompanhado de choro e confusão de não saber lidar com a violência. Toda palavra que me é gritada, me causa silêncio e uma imobilização. Talvez tudo pareça meio poesia, meio entrelinhas o que tento desabafar aqui. Mas eu não consigo me ver depois de um grito seu, não consigo existir como sou e nem como você é. Não sei se o que sai de mim depois de ouvir um grito é hiato, reticência, teimosia, dissonante, um desafinar, sumir, um desafiar, um desaforo e na verdade tudo vira confusão. Então eu choro porque dói.

Na minha garganta, existe um nó do tamanho do mundo. O meu coração bate cento e treze vezes e para. Acontece que sim, meu coração é frágil, até para remendar ele dói. O que posso fazer? Se chorar, molha e quando molha se desmancha.
As vezes consigo engolir o choro, mesmo que isso doa mais por dentro. O peito torce igual pano cheio de água, mas está seco. Não é drama, não é show. É dor, você consegue entender?
Quantas vezes eu já ouvi de você “para de drama”, “vai começar o show?” Meu deus, isso dói de tantas maneiras diferentes. Sim, eu tenho 34 anos, eu sei, mas o tempo não ameniza tudo, a gente também vem ferida, traumatizada e com limitações. Você detesta minha ansiedade, meu choro, minha memória… E eu não consigo viver com os seus gritos. Talvez aqui eu esteja tentando gritar dentro de mim. Gritando com lágrimas. Você sabe que o “corpo fala” então vem dores de cabeça, moleza, dores nos ombros e na costa e outros sintomas.

Eu sei que nos acostumamos com muita coisa mas precisamos nos reinventar. Reinventar nossa comunicação. Seu grito, meu choro, nossa raiva, minha confusão, seu estresse. Acho que isso não vai dar pra juntar e dar pras gatas brincarem. Pandora não vai querer. Riacho é medroso.

Entendo que talvez sua trajetória de vida tenha feito você gritar pra ser ouvida ou pra conseguir algo. Mas pra mim, o grito desencadeia agressão e violência. E preciso mais uma vez te falar isso com a finalidade de que juntas possamos encontrar saídas para não nos doermos, pois no mundo já tem muita dor e agente juntas é muito melhor do que a gente separadas.

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